Aos 44, tricampeã mundial de caratê
supera os jovens e intriga
cientistas
Após driblar as drogas, Ciça Maia vira objeto de estudo, com frequência
cardíaca surpreendente e velocidade de reação melhor que a dos homens
Por Guilherme Marques
Rio de Janeiro
Uma história de vida que tinha tudo para acabar no
anonimato ou até algo pior que isso. Um perfil físico que remete a histórias de
super-heróis e chega a intrigar cientistas e pesquisadores da saúde. Assim pode
ser definida a definição da carreira de Maria Cecilia de Almeida Maia, a Ciça
do caratê. Pouco lembrada, para não dizer esquecida, a lutadora chega aos 44
anos com um desempenho superior ao de muitas atletas mais jovens. À sombra do
sucesso, a tricampeã mundial se torna objeto de estudo. O motivo? A jovialidade
de uma garota.
Ciça Maia: 44 anos de muita luta, dentro e fora dos
tatames (Foto: Guilherme Marques / Globoesporte.com)
Apesar da idade avançada para a modalidade, Ciça
luta até hoje nas categorias livre e peso médio (55kg a 61kg). E é justamente
este fato que deixa os pesquisadores da Escola de Educação Física do Exército e
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EsEFEx) sem entender o que se passa
com o corpo da atleta.
- Um fato que sempre nos chamou a atenção é como
ela tem uma frequência cardíaca menor que a de meninas muito mais novas. E
outro: como a velocidade de reação dela é tão mais rápida que a dos homens, essa
questão do reflexo. Não é a toa que ela chegou cinco vezes à final do mundial -
disse o instrutor de lutas da EsEFEx e um dos que estudam o caso, Capitão Pedro
Ivo.
Outro fato curioso é que, mesmo em um esporte de
tanto contato físico, Ciça, que compete há 25 anos, nunca sofreu uma lesão. Mas
a vida da atleta nem sempre foi de pontos positivos. Além dos problemas de
falta de patrocínio e das dificuldades no meio esportivo, Ciça sofreu durante a
infância e a adolescência.
Vida complicada
desde a infância
Filha de Ângela Augusta de Almeida, uma diarista
mãe de sete filhos que hoje tem 65 anos, Ciça nem chegou a conhecer o pai. Aos
7 anos, morou na rua por um tempo, quando sua família foi despejada da casa
onde morava, no Centro do Rio de Janeiro, por falta de pagamento. Sem condições
de criar os filhos, Ângela deixou as crianças com uma vizinha, que se
solidarizou com a história. Mas Ciça, com seu comportamento rebelde, não se
adaptou e deixou a casa. Foi morar então com outra família, onde permaneceu por
11 anos. Lá, cuidava de uma criança. Certo dia, ao buscá-la na creche onde
estudava, foi convidada a trabalhar lá. Com seu primeiro salário, se inscreveu
em uma academia, onde conheceu o caratê.
Ciça treina com o amigo e lutador Sérgio Éric
(Foto: Guilherme Marques / Globoesporte.com)
- Quando cheguei lá e vi aquilo falei: 'É isso que
eu quero”. Assisti à primeira aula numa sexta-feira, voltei com um quimono
emprestado e me matriculei. Daí foi uma ascensão muito rápida. Em oito meses o
treinador me botou para competir no Campeonato Carioca. Tive um desempenho que
surpreendeu todos – conta.
Com os colegas dando apoio, Ciça foi convidada a
integrar a seleção carioca para disputar um torneio em Minas Gerais. Lá, a
“Trombadinha do Rio”, como era chamada, brilhou e ganhou a chance de disputar
uma vaga na seleção brasileira. Quando atingiu esse nível, passou a se destacar
também em competições internacionais.
Na linha tênue
entre o sucesso e o fim
No entanto, o que parecia ser o ápice da carreira
se transformou em pesadelo em pouco tempo. Ciça conheceu um italiano, com quem
passou a dividir um apartamento. Certo dia, o companheiro sumiu de casa. A
lutadora conta que só foi descobrir o seu paradeiro alguns anos depois. E a
notícia que chegou não era nada animadora: o italiano, portador do vírus HIV,
tinha morrido. Desesperada, Ciça foi buscar refúgio nas drogas e quase se
rendeu ao mundo do crime. Mas foi no próprio esporte que encontrou a
recuperação.
- Eu caminhava nessa linha tênue, era um precipício
que estava do meu lado, mas eu cai no lugar raso e me salvei. Nos treinos, eu
extravasava. Comecei a canalizar de uma maneira muito positiva toda essa minha
raiva da vida. Poxa, por que logo comigo, que já tinha sofrido tanto? De uma
certa forma, minha vida foi melhorando, fui conhecendo outras culturas e isso
foi gerando em mim um sentimento de conquista - explica.
Enquanto se respira e tem vida, podemos continuar sonhando, essa é a
força que não me deixa desanimar"
Ciça Maia
Focada no sucesso, Ciça voltou a conquistar
vitórias, títulos e amigos. Mas o reconhecimento parece nunca ter se aproximado
muito da lutadora. Mesmo tricampeã mundial (92, 98 e 2008), pentacampeã
sul-americana, tetracampeã pan-americana, 13 vezes campeã brasileira, 13 vezes
estadual, campeã dos Abertos de Paris, África do Sul e Angola, ela não perde a
humildade. Aliás, perder é um verbo que a atleta tenta não conjugar. Foram
apenas três Brasileiros perdidos em 25 anos de carreira.
A lutadora teve uma longa história também no Vasco.
Defendeu a Cruz de Malta por dez anos. Com o fim da modalidade no clube, Ciça
se diz decepcionada, mas não magoada com os cruzmaltinos.
- Quando você dedica suor, sangue, lágrimas,
esforço e vê tudo indo embora é triste. Mas tenho um carinho muito grande pelo
Vasco. Tenho gratidão por ter sido o único clube no Rio a abrir as portas e
proporcionar a cada um de nós a possibilidade de sonhar - conta.
Hoje mãe de três filhos - todos lutadores de caratê
- , Ciça espera continuar lutando, apesar da idade. Para ela, ficar grávida não
atrapalhou sua carreira. Pelo contrário, foi um incentivo.
- É engraçado, porque depois que tive meus filhos
senti que meu rendimento melhorou muito. Foi como a quebra de um mito. Acho que
é porque melhora muito a cabeça - argumenta.
Vencedora na vida e nos tatames, Ciça tem planos de
encerrar a carreira em breve. A intenção é de se tornar treinadora e voltar a
estudar, já que parou ainda no primeiro grau. Entre as opções, faculdades de
Educação Física, Fisioterapia e Psicologia.
- Pena que perdi muito tempo. Mas enquanto se
respira e tem vida, podemos continuar sonhando, essa é a força que não me deixa
desanimar - conclui a vencedora lutadora.